
O dia é 19 de dezembro de 2020.
Júpiter e Saturno se colocaram em Aquário, o Aguadeiro. Nos antecedentes do evento, uma miríade de discursos proclama a vinda de uma grande transformação benéfica que reformaria as bases dos sistemas vigentes. Apesar da potência das palavras, a “revolução positiva” prometida não veio por aqueles dias.
Naquele dia, para muitas pessoas, a vida estava cercada das restrições da pandemia. Para quem estava presencialmente ativo, as práticas de higiene e distanciamento se somavam à invisibilidade das expressões faciais por meio das máscaras de proteção. Estádios, teatros, festivais: fechados. No contexto das vídeochamadas, participantes se limitavam ao espaço de um pequeno quadrado de tamanho igual para cada. Em uma sala de aula, não existe galera do fundão, muito menos os observadores do canto e tão pouco o clube da linha de frente. Em interações, foi frequente ouvir conversas nas quais se citava que não sabia como estava “fulano” ou que destino levou “ciclano”. O cuidado passou a ser estabelecido mais pela ausência calculada do que pela presença espontânea. Mesmo para quem decidiu negar o movimento amplo, houve, em algum momento, a sensação de maior distanciamento do que nos anos anteriores.

Aquário é um signo frio, saturnino, fixo e correspondente ao ápice de um longo Inverno. Imageticamente, Saturno costuma ser representado como um deus velho, angustiado, detentor de uma foice que castra o domínio e a luz do Outro. Senhor do Tempo. Chumbado. Melancólico. Relativo aos medos, doenças crônicas, lutos e limitações.
Os tempos contemporâneos podem soar confusos para certas gerações. Nunca estivemos tão cercados de discursos, presenças e informações. Ainda assim, a solidão e a angústia compartilham o passo com as multidões. Os excessos alimentam um efeito “blasè” em cada pessoa, especialmente nos moradores de metrópoles, como já dizia George Símmel, um século atrás. São tantos estímulos que ao final do dia reina o desejo de “desaparecer de si”, como nomeia o estudo de Le Breton sobre este fenômeno crescente. Fugir para uma ilha. Habitar uma comunidade. Apagar as redes sociais. O “desaparecer de si” se modula mais como uma fantasia de escape frente à torrente de estímulos do que propriamente uma realização concreta por grande parte dos indivíduos.

Aquário é um signo de multidões. Tanto de pessoas quanto de ideias ou sistemas. É o signo da dissolução aos ventos. Uma contraposição à concentração luminosa do signo de Leão, o Nobre. Por conta disso, Aquário ressoa a negação das hierarquias ancoradas no valor das pessoas. A moeda de ouro se desgasta no frio saturnino de Aquário. Tudo se dissolve com a ação do tempo.
Enquanto sobreviventes de um longo período de austeridade aquariana, também acabamos por nos dissolver nos espaços restritivos da pandemia, da virtualização e do distanciamento social. Somos multidão. E o vazio. Somos o todo. E o nada.
Júpiter e Saturno, durante parte expressiva daquele período até agora, declaram: “existe benção e castração em um ‘não-lugar’.”
A benção de Júpiter em Aquário não tardou para ser sentida desde 2020. São tempos de se repensar o conteúdo e a forma das realezas costumeiramente postas. Pela via da justiça jupiterial, se a velocidade e a irresponsabilidade de certos cancelamentos causaram transtornos para tantos, houve, por outro lado, pelas redes sociais, a visibilidade das mazelas de grupos sociais ainda dominantes. A desigualdade segue pandêmica. Pela via da fertilidade jupiterial, as mesmas salas virtuais que limitaram os corpos a um pequeno quadrado também propiciaram a reunião de indivíduos de diferentes regiões do Mundo. Aboliram-se, com os devidos limites e em certos circuitos, as fronteiras geográficas e nacionais, em prol da troca de sabedorias, tema também caro ao signo de Aquário.
Ainda assim, chega o momento de Júpiter partir de Aquário para encontrar o seu lugar de domicílio no signo de Peixes. A Roda do Mundo gira. E que a impermanência é uma das poucas garantias da vida vivida. Chega o momento de partir dos “não-lugares”. E permitir que um certo vazio deixado pelos tempos seja preenchido de um novo conteúdo.

Em Peixes encontra-se a fabulação, o romantismo, o drama épico. Sendo um signo jupiterial, úmido e fértil, não existe coisa que permaneça a mesma dentro de sua copa. O pouco ganha tons de tudo e a pequenez se alavanca com o potencial inalienável de fabricar a própria grandeza. O cinza invernal de Aquário cede lugar às cores vibrantes e psicodélicas dos cardumes, também ressoantes da vitoriosa Vênus. E, por conta disso, é em Peixes que se encontra o espaço de uma poética que contesta o enquadramento preciso e neurótico do signo oposto, o mercurial Virgo.
Desde o dia 29 de dezembro de 2021, Júpiter se encontra em Peixes. E Saturno seguirá em Aquário. Com isso, os limites seguem. Agora embriagados pelo signo que se permite ao romantismo de sua própria fé.
Texto por Bruno Ueno
BIBLIOGRAFIA (inspiração, base)
LE BRETON, David. Desaparecer de si: uma tentação contemporânea. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.
MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios: uma seleção. São Paulo, Companhia das Letras, 2010.
PESSANHA, Juliano G. Recusa do não-lugar. São Paulo: Ubu Editora, 2018.
VALENS, Vettius. Anthologies. Tradução de Joëlle-Frédérique Bara. Leiden: E.J. Brill, 1989.